EVOLUÇÕES DA RESPONSABILIDADE CIVIL: DO OCASO CIENTÍFICO DA CULPA À RESPONSABILIDADE OBJETIVA - UMA TRANSIÇÃO ICÔNICA ENTRE FIGURAS*
Entender a transição existente entre a
responsabilidade civil subjetiva e objetiva pode ser considerada como um dos
marcos teóricos da pacificação social por meio do ordenamento jurídico. Como o
tema parece complicado buscaremos tecer breve esclarecimentos.
Com o processo histórico-evolutivo da
responsabilidade civil tem-se a coroação de uma “rainha”: a responsabilidade civil pautada na culpa.
A idéia de que alguém só poderia ser
responsabilizado civilmente se fosse demonstrada e provada a sua culpa (em
sentido amplo) impregnou-se em todos os sistemas jurídicos, desde os
precursores até o mais distantes do epicentro desta ideia.
Assim
porque se mostravam impróprios (e até insuficientes) os sistemas de
responsabilidade coletiva e de vingança privada; eles eram contrários ao que
defendiam os juristas modernos.
Dessa
maneira, a culpa seria imposta pela ideologia liberal e individualista como
sendo um mau uso da liberdade individual, o que possibilitava então, com maior
espaço, a atuação dos particulares[1], portanto, ela estava
imbuída de uma forte conotação moral e psicológica.
No
que tange à sua definição jurídica, SCHREIBER citando PONTES DE MIRANDA diz que
ela se traduziria na “falta da devida atenção” [2]. Cabe completar no sentido
de que seria a “falta da devida atenção” se manifestando por meio da fórmula
tríplice da negligência, imprudência e imperícia.
Todavia, com o avanço técnico-científico
e com a revolução industrial às portas, a presença e prova da culpa, tal qual
preceituada pela lei, não eram mais tão capazes de resolver todos os problemas
no que concerne ao ressarcimento de danos.
Assim surgiam e perpetuavam-se várias
hipóteses de danos irressarcíveis, o que é indesejado para qualquer sistema
jurídico sério e humanizado (quem diria, portanto, para o sistema liberal).
Com relação a esses danos irressarcíveis
vale conferir o exposto por MARANHÃO arribado em GODOY:
É que os desumanos vínculos de trabalho, o frio
maquinário produzido a larga escala pela indústria, o manuseio de insumos perigosos
e a crescente invasão dos veículos contribuíram para o surgimento de
diferenciados tipos de acidentes, muitos deles até mesmo inevitáveis, de tal
arte que, a cada dia, passou-se a perceber, com a nefasta experiência do
cotidiano, a enorme dificuldade das vítimas em provar a conduta culposa dos
lesantes, conforme exigência do então vigente modelo de responsabilidade civil[3]
A
dificuldade probatória que se escondia por de trás do requisito da culpa era
tão intensa e (até) injusta que acabou sendo percebida como uma realidade de
maldade com as vítimas.
Essas ficavam diante do dissabor já
causado pelo dano que era assaz agravado pelo previsível fracasso probatório no
processo judicial de reparação, o que as levaria à uma situação de
irressarcimento.[4]
Eram
os tempos do que a doutrina conveio em denominar de probatio diabolica. Sobre ela convém transcrever SCHREIBER:
Em
sua versão de falta moral, vinculada aos impulsos anímicos do sujeito e à
previsibilidade dos resultados de sua conduta, a culpa mostrava-se um elemento
de dificílima comprovação. Sua aferição impunha aos juízes tarefa extremamente
árdua, representada por exercícios de previsibilidade do dano e análises
psicológicas incompatíveis com os limites naturais da atividade judiciária, a
exigir do magistrado quase uma capacidade divina [...] [5]
É notável, portanto, que com o advento
da modernidade e com toda a mudança pela qual passou o espírito humano, seria
necessária também uma mudança no espírito jurídico da responsabilidade civil. A
culpa não era mais suficientemente eficaz, sua prova era a sua ineficácia em
não raros casos. Era preciso repisar o caminho, mudar, repensar.
Neste pórtico é que emergem as linhas de
HIRONAKA:
Há um novo sistema a ser construído, ou, pelo menos,
há um sistema já existente que reclama transformação, pois as soluções teóricas
e jurisprudências até aqui desenvolvidas [...] encontram-se em crise, exigindo
a revisão em prol da mantença do justo[6].
Mercê disto, passaram doutrina e
jurisprudência a utilizar-se de variados “artifícios”
e discursos para que se pudesse tentar uma salvação para a responsabilidade
subjetiva sem que fosse preciso cogitar uma nova teoria.
Surgem neste momento posições
doutrinárias que diminuem o rigor técnico exigido para a configuração da culpa,
fazendo que ela seja extraída, pelos juízes, das próprias circunstâncias, ou
dos antecedentes do causador do dano[7].
Logo após aportam teorias favoráveis à
aplicação de uma presunção de culpa em desfavor do agente causador do dano,
sendo levado em consideração para tanto a existência do próprio dano; assim,
constatado o dano, poderia o culpado provar que não havia nexo causal entre a
conduta dele e o dano.[8]
Este foi o caminho encontrado, por
exemplo, pelo famoso Código Civil Italiano de 1942 em seu artigo 2050: “aquele
que ocasionar prejuízo a outrem no exercício de uma atividade perigosa pela sua
natureza ou pela natureza dos meios adotados, ficará obrigado à indenização se
não provar ter adotado todas as medidas idôneas para evitar o prejuízo”.[9]
Interessante citar ainda a incursão que
se fez ao redor da chamada concepção objetiva da culpa (também chamada de culpa
normativa). Com ela, desconsiderando particularidades do agente, realiza-se uma
avaliação de seu comportamento em comparação com uma figura pré-determinada e
abstrata (os chamados homem-médio, bonus
pater familias,e “reasonable man”)
e com base nisto tem-se a (in)existência da culpa.[10]
Também se passou a cogitar então e
acabou-se por introduzir na legislação a máxima ubi emolumentum, ibi onus (onde está o ganho, aí está o encargo),
que trouxe consigo a chamada Teoria do Risco Proveito[11].
Era mais uma das concepções dos
franceses, neste caso Saleilles. Para ele, no caso de acidente de trabalho, o
empregador, independentemente de culpa provada e demonstrada, deveria responder
pelos danos sofridos pelo empregado em consequência e por ocasião da sua
jornada de labor.[12] Sua teoria teria diversos
desdobramentos no âmago da responsabilidade civil objetiva.
No mesmo desiderato a lição de GAGLIANO
e PAMPLONA FILHO:
Assim, num fenômeno dialético, praticamente
autopoiético, dentro do próprio sistema se começou a vislumbrar na
jurisprudência novas soluções, com a ampliação do conceito de culpa e mesmo o
acolhimento excepcional de novas teorias dogmáticas, que propugnavam pela
reparação do dano decorrente, exclusivamente, pelo fato ou em virtude do risco
criado.[13]
E
não diferente era, anos atrás, o posicionamento do eminente JOSSERAND, que não
se poderia deixar de transcrever:
Uma verdadeira revolução, dissociando completamente
a responsabilidade da culpa, erigindo o patrão, a comuna ou o explorador da
aeronave em seu próprio segurador por motivo dos riscos que criou; a idéia de
mérito ou de demérito nada tem a ver no caso; a lei impõe o princípio justo e
salutar “a cada um segundo seus atos e segundo suas iniciativas”, princípio
valioso para a sociedade laboriosa; princípio protetor dos fracos: a força, a
iniciativa, a ação devem ser por si mesmas geradoras de responsabilidades[14]
Mas, antes de tratar das variações
trazidas pela figura do risco, incumbe dizer que mesmo com essas modificações,
a culpa, e por consequência a responsabilidade civil subjetiva ou clássica, não
estavam sendo suficiente para dar o respaldo necessário ao sistema jurídico.
Assim elas foram saindo quase que completamente de cena[15].
Insta salientar que como se pôde notar
todas essas tentativas foram frutos da reflexão dos jurisconsultos e/ou da pena
dos tribunais e juízes, a quem a vontade de garantir justiça andou sempre à
frente da legislação de seu tempo.[16]
Diante disso que também o legislador
sentiu a necessidade de fazer inserir no ordenamento jurídico, situações que
prescindissem da prova do fator culpa.
A tendência agora era uma objetivização
da responsabilidade civil. Era preciso prescindir da culpa e de suas “sereias”, que por algum tempo,
conseguiram hipnotizar a comunidade jurídica com seu canto de que a
responsabilidade civil subjetiva poderia se salvar.
Era imprescindível a possibilidade de um
dano poder ser reparado sem toda essas mirabolantes concepções para que os
anseios modernos e pós-modernos fossem atendidos; deixou-se de buscar a pessoa
do lesante e passou-se a olhar para o lado da vítima do dano[17].
Confira-se o que disse CHINELATO sobre
esse prisma jurídico de reforma do sistema da responsabilidade civil: “a
tendência à objetivização da responsabilidade civil atende à sociedade
pós-moderna, sociedade de massa e globalizada, caracterizada pelos riscos da
produção e do desenvolvimento, nos quais se inclui a tecnologia [...]”[18].
Houve então o formal reconhecimento, por
meio da legislação, que o instituto da culpa não mais era corolário para que se
pudesse impor responsabilidade civil a alguém, marcadamente naquelas áreas em
que se havia maior índice de acidentes (viés quantitativo) e em que ocorre
maior dificuldade na produção da prova da culpa (viés qualitativo) [19].
Emerge assim, a novel responsabilidade
civil objetiva, ou sem culpa, a qual se pode resumir (em apertada síntese),
como sendo espécie de responsabilidade civil em que não se cogita de conduta
culposa ou dolosa do agente causador do dano para que possa haver lugar à
indenização, basta que haja relação de causalidade entre o dano causado à
vítima e a ação ou omissão do agente.[20]
O principal ideal dessa espécie de
responsabilidade civil era conseguir superar o individualismo que inquinou por
tanto tempo a noção de culpa, de modo que agora se teria o surgimento de uma
responsabilidade civil mais coletiva, mais social. Eis aí quem seria o “primeiro-ministro” que ouviria as
necessidades do povo e passaria a atuar no lugar que antes da “rainha” culpa.
Ocorria assim uma mudança paradigmática
na responsabilidade civil moderna: se trocava a maneira de responder ao próprio
fenômeno jurídico da reparação dos danos. Era chegada a hora da Teoria do risco
ganhar terreno e transformar a responsabilidade civil.
GUILHERME DE SOUSA CADORIM [²¹]
*Texto que fez parte das aulas expositivas ministradas pelo autor nas monitorias de Direito Civil II da Faculdade de Direito de Franca nos anos de 2013-2015.
[1] SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil: Da
Erosão dos Filtros de Reparação à Diluição dos Danos. 2. ed. São Paulo:
Atlas, 2009, p. 12.
[2]
SCHREIBER, Anderson. Op. cit, p. 15.
[3] MARANHÃO, Ney Stany Morais. Responsabilidade Civil Objetiva pelo
Risco da Atividade: uma perspectiva civil-constitucional. São Paulo:
Método, 2010, p.180.
[5] SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil: Da
Erosão dos Filtros de Reparação à Diluição dos Danos. 2. ed. São Paulo:
Atlas, 2009, p. 17.
[6]
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade
pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 3.
[7] MARANHÃO, Ney Stany Morais. Responsabilidade Civil Objetiva pelo Risco
da Atividade: uma perspectiva civil-constitucional. São Paulo: Método,
2010, p.181-182.
[9]
“Chiunque cagiona danno ad altri nello svolgimento di un'attività pericolosa,
per sua natura o per la natura dei mezzi adoperati, e tenuto al risarcimento,
se non prova di avere adottato tutte le misure idonee a evitare Il danno”.
[11] BIANCO, João Carlos. Apontamentos de
Responsabilidade Civil. Franca:
Texto distribuído em sala de aula na Faculdade de Direito de Franca, 2014, p.
10.
[13] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO,
Rodolfo. Novo curso de Direito Civil. v.
3. 7. ed. São Paulo: Saraiva: 2009,
p.11.
[14] JOSSERAND,
Louis. Evolução da Responsabilidade
Civil. Revista Forense. Vol. 86,
Rio de Janeiro: Forense, abr./um. de 1941 p. 52 apud BIANCO, João Carlos. Apontamentos de
Responsabilidade Civil. Franca:
Texto distribuído em sala de aula na Faculdade de Direito de Franca, 2014, p.
10.
[15]
Foi dito “quase” porque em vários ordenamentos há ainda previsões de
responsabilidade civil fundada na culpa. Ela pode ter sido destronada, mas
nunca foi morta e sepultada. Assim também posto que ao mencionar ocaso da culpa
quer-se referir à decadência do pensamento de que a culpa era o único
fundamento para a verificação da responsabilidade civil; mas ela continuou
permeando os ordenamentos jurídicos de diversos países, inclusive o brasileiro,
desde os idos de 1916 até atualmente.
[16] MARANHÃO, Ney Stany Morais. Responsabilidade Civil
Objetiva pelo Risco da Atividade: uma perspectiva civil-constitucional. São
Paulo: Método, 2010, p. 184.
[17] MARANHÃO, Ney Stany Morais. Responsabilidade Civil Objetiva pelo
Risco da Atividade: uma perspectiva civil-constitucional. São Paulo:
Método, 2010, p. 181.
[18] CHINELATO,
Silmara Juny. Tendências da
Responsabilidade Civil no Direito Contemporâneo: Reflexos no Código de 2002. In DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones
Figueirêdo (coordenadores). Novo Código
Civil – Questões Controvertidas: Responsabilidade Civil. Séries Grandes
Temas de Direito Privado. Vol 5. São Paulo: Método, 2006, p.588 apud MARANHÃO, Ney
Stany Morais. Responsabilidade Civil Objetiva pelo Risco da Atividade: uma
perspectiva civil-constitucional. São Paulo: Método, 2010, p. 181.
[19] MARANHÃO, Ney Stany Morais. Responsabilidade
Civil Objetiva pelo Risco da Atividade: uma perspectiva civil-constitucional.
São Paulo: Método, 2010, p. 184 - 185.
[20] BIANCO, João Carlos. Apontamentos de
Responsabilidade Civil. Franca:
Texto distribuído em sala de aula na Faculdade de Direito de Franca, 2014, p.
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