Um breve discurso sobre as linhas mestras da Responsabilidade Civil Pressuposta¹

by - 00:52:00

         Em estudos que culminaram na sua tese de livre docência, GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA[2] buscou guarida na Constituição Federal de 1988, sobretudo, fundando-se no princípio da solidariedade social[3] e da dignidade da pessoa humana[4], para trazer a lume uma tese reformuladora do sistema de responsabilidade civil.

Segundo ela, o sistema de responsabilidade civil deve ter “por objetivo precípuo, fundamental e essencial a convicção de que é urgente que deixemos hoje, mais do que ontem, um número cada vez mais reduzido de vítimas irressarcidas”[5]. A maneira de realizar esse objetivo seria para ela a Responsabilidade Pressuposta.

Para HIRONAKA, todo o mundo jurídico, mas mais especialmente os sistemas ocidentalizados, têm buscado alcançar uma construção (ou talvez a consolidação) de um denominador comum, isto é, um critério suficientemente capaz de assegurar, no modo de vida contemporâneo, a reparação efetiva e adequada aos danos sofridos[6].

Apesar de parecer contundente, não é fácil, em sociedades democráticas e pluralistas (que por sua vez constroem um sistema jurídico com essa mesma identidade), encontrar um critério deste porte. Tanto é assim, que acompanha essa noção de dificuldade a posição ciente da autora, confira-se:

Não é simples encontrar um critério dessa maneira, ou seja, portador de qualidades que o permitam posicionar-se como um denominador comum de variadas hipóteses danosas, já ocorridas ou não, bem como um critério que tenha qualidades e atributos tão suficientes que possam arrebanhar as hipóteses todas, subsumindo-as à sua determinação de responsabilização. Não é simples encontrar um critério assim porque não se busca apenas um critério tão geral que possa, a partir de um padrão de melhor segurança, constituir-se em fundamento essencial e intrínseco de um sistema de responsabilização por vir. No entanto, pretende-se um critério que pudesse, perfeitamente, determinar-se em prol dessas intenções e exigências primordiais, quais sejam, em que o número de vítimas de danos que permanecem irressarcidas fosse um número – a cada vez, e sempre – significativamente menor. [7]

Desde logo cumpre esclarecer, no entanto, que a noção de responsabilidade civil que ela se predispõe a tratar não implica em uma tentativa de evitar todo e qualquer tipo de perigo, o que seria (segundo a própria HIRONAKA) “impraticável, inviável e inimaginável” [8].

Pressupõe a sua teoria a diminuição do dano.

Pois bem. Essa diminuição do dano, ou pelo menos dos efeitos (irressarcidos) causados pelos danos, seria conquistada a partir do momento em que fosse entendida a real necessidade de se reformular o sistema de responsabilidade civil e “designar novamente o responsável, em circunstâncias que superem ou ultrapassem os já estreitos limites impostos pelos muros da culpa e da objetivação legal casuisticamente descrita pela norma”.[9]

Tal seria alcançado por meio de um critério geral de imputação que permitisse ao regime objetivo de responsabilidade civil, situar-se além e a frente da casuística legal já positivada (ou em vias de o ser), atendendo-se assim, efetivamente aos ditames constitucionais da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social.

Significa dizer, portanto, que a partir do instante que a inevitabilidade do dano é aceita, “a disciplina jurídica da responsabilidade civil deveria visar à redução do custo social que ele representa, seja por meio da adoção de medidas de prevenção, ou porque alguém responderá por ele” [10].

Pode-se notar assim que o dano mantém o seu papel de protagonista, mas agora o tratamento dispensado a ele pelo sistema geral de responsabilidade civil deve ser outro, tendo por base, por exemplo, os estigmas causados às vítimas, ao sistema e a sua recente redimensionalização ontológica.

Exatamente nesse desiderato é que se inspira o conceito de responsabilidade pressuposta.  Deve-se tentar buscar, prima facie, reparar o dano causado à vítima, e só depois verificar de quem foi a culpa ou quem é que assumiu o risco de causar aquele dano[11].

Assim porque, tanto culpa quanto o risco mostraram-se como critérios insuficientes para serem tidos como fundamentos do dever indenizatório; um pela dificuldade na sua comprovação e o outro pela necessária espera por previsão legal que o abarcasse [12]

Jamais seria exigível, portanto, que a sociedade aguardasse, sentada e de braços cruzados, sofrendo calada (ou gritando sem que ninguém a escutasse) até que um sistema perfeito – ou melhor - fosse concebido (se é que isso seria possível).

 Era preciso uma resposta tão logo o problema fosse confrontado.

À culpa e ao risco se deve impor, desta forma, o mero papel de fonte de responsabilidade civil, não fundamento.

Parece algo inovador, mas pasme o leitor que já era essa a concepção (ignorada) do eminente CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA antes mesmo que as linhas de HIRONAKA fossem traçadas. Talvez agora ela mereça maior atenção por ainda se mostrar retumbante e verdadeira, veja-se:

Culpa e Risco devem deixar de ser considerados como fundamentos da responsabilidade civil para ocuparem o lugar que efetivamente ocupam, isto é, a posição de fontes da responsabilidade civil, sem importar se uma delas tem primazia sobre a outra, sem a preocupação de que uma aniquila a outra [...] [13]

 Assim, em síntese, a teoria da responsabilidade pressuposta traduz-se numa releitura que impele que sejam as vítimas vistas antes que analisados as fontes da responsabilidade civil; é a tradução de uma visão humanitária e solidária que o direito absorve e com quem passa a ter uma saudável simbiose.

Arrisca-se o presente estudo a apontá-la como saudável, pois ao direito civil é que – desde os seus primórdios – é dado preocupar-se com a vítima e os danos sofridos por ela, tentando quanto possível restabelecer a posição de uma igualdade destruída.

Por sua vez, a outros ramos do direito, como por exemplo, o direito penal, incumbe a preocupação com o agente e a reprovabilidade de sua conduta. Pauta-se esse raciocínio a partir das linhas de FACCHINI NETO:
                                                                                                                                 O foco atual da responsabilidade civil, pelo que se percebe da sua evolução histórica e tendências doutrinárias, tem sido no sentido de estar centrada cada vez mais no imperativo de reparar um dano do que na censura do seu responsável. Cabe ao direito penal preocupar-se com o agente, disciplinando os casos em que deva ser criminalmente responsabilizado. Ao direito civil, contrariamente, compete inquietar-se com a vítima[14]

Ainda para corroborar esse entendimento cumpre trasladar os ensinamentos da “mãe” da responsabilidade pressuposta, ela que pautada pela visão de necessidade de efetivação da dignidade da pessoa humana, expõe a sua preocupação que o direito deve ter com a vítima desde o momento de sua gestação:

O contorno fundamental da principiologia de amparo e o matiz de sustentação do viés axiológico de resguardo de tal reestruturação sistemática [da responsabilidade civil] deverá estar, por isso mesmo, indelevelmente vinculado ao respeito à dignidade da pessoa humana, esta que é, enfim, o sentido e a razão de toda e qualquer construção jurídico-doutrinária ou jurídico-normativa. Tudo exatamente para que o direito, pensado em sua gênese, cumpra seu papel mais extraordinário, o papel de responsável pela viabilização da justiça e da paz social.[15]

Por fim cumpre destacar que a posição de HIRONAKA e de sua teoria não é tida como isolada na doutrina, seja nacional ou estrangeira.

Nessa senda é, por exemplo, os apontamentos de FLÁVIO TARTUCE que em sua obra indica algumas hipóteses em que a responsabilidade pressuposta já é perfeitamente vislumbrada em nosso país.

Algumas das hipóteses trazidas por ele, em sua obra, são a da responsabilidade civil do Estado[16], “uma vez que as vítimas devem ser reparadas, para depois se investigar quem é o ‘culpado’, bem assim os julgados que têm reconhecido a imprescritibilidade da pretensão atinente a violações de direitos da personalidade” [17].

Já no que importa a doutrina internacional, como mencionado, a própria HIRONAKA destaca os avanços das lições da ilustre GENEVIÈVE SCHAMPS, jurista belga que chegou a um denominador comum capaz de ser fonte e fundamento indiscutível de responsabilidade civil que resolveu por chamar de “mise em danger”[18].

Conforme consta de nota explicativa da obra de HIRONAKA[19], o termo deriva da conjugação do particípio de verbo “pôr”, em francês, que aliado de um complemento se transforma numa expressão idiomática que indica ação; assim, “mise em danger” quer denotar a ação de colocar em perigo ou em risco alguém.

De posse dessa noção é que SCHAMPS produziu um estudo em que se buscava a verificação da (in) existência de padrão de caracterização de determinadas situações que expõem as pessoas a determinado risco, criticando as vertentes de exclusão da responsabilidade e mostrando quem eram os responsáveis pela ocorrência de tais danos, ao seu entender, ressarcíveis[20].

Assim, com a definição de um limite pela fixação da “mise em danger” (o denominador comum) é que se podem alcançar situações prejudiciais que legitimem a imputação de um dever de indenizar além do sistema subjetivo e das prefixações específicas objetivas de responsabilidade, considerando ainda as impossibilidades de se eliminar o perigo por meio da ação de medidas de precaução[21].

Para os amantes mais apaixonados da responsabilidade civil, chega ser emocionante conceber a construção de justiça distributiva por meio da realização dessa técnica.

Não são em outros sentidos as conclusões de HIRONAKA:

A esse nível de otimização talvez seja possível chegar a, em tempo não tão distante, de sorte a se obter, enfim, um critério geral de fundamentação do regime objetivo de responsabilidade civil, situado além da solução legal casuística, critério este que visasse atender mais eficientemente os direitos das vítimas de danos, considerando, sobretudo, os princípios constitucionais da solidariedade social e dignidade da pessoa humana, e que se portasse, enfim, como um verdadeiro – e suficientemente abrangente – autocritério de justificação da responsabilização civil na contemporaneidade.[22]

       A guisa de conclusão, cabe elucidar os traços concretos daquilo que aqui se chamou de responsabilidade pressuposta. O trecho, embora relativamente longo, é transcrição das relevantes e valorosas linhas da própria matriarca da responsabilidade pressuposta:

Segundo a nossa visão, e a partir da incansável reflexão acerca do assunto, até aqui, uma mise en danger otimizada tenderia a corresponder ao que chamamos de responsabilidade pressuposta e poderiam ser descritos assim os traços principais que ela contém: 1) risco caracterizado (fator qualitativo): é a potencialidade, contida na atividade, de se realizar um dano de grave intensidade, potencialidade essa que não pode ser inteiramente eliminada, não obstante toda a diligência que tenha sido razoavelmente levada a cabo, nesse sentido; 2) atividade especificamente perigosa (fator quantitativo): subdivide-se em: a) probabilidade elevada: corresponde ao caráter inevitável do risco (não da ocorrência danosa em si, mas do risco da ocorrência). A impossibilidade de evitar a ocorrência nefasta acentua a periculosidade, fazendo-a superior a qualquer hipótese que pudesse ter sido evitada pela diligência razoável; b) intensidade elevada: corresponde ao elevado índice de ocorrências danosas advindas de uma certa atividade (as sub-espécies deste segundo elemento podem, ou não, aparecerem juntas; não obrigatoriamente).[23]

A sensação que se tem, portanto, depois de toda essa análise e mudanças, é de que passa um verdadeiro tornado pela casa da responsabilidade civil: seus móveis estão fora dos lugares usuais, suas paredes e alicerces estão trincados, uma série de doutrinas e jurisprudência entra e saem de seu interior, o afluxo de idéias é um fervilhar sem fim; mas, frise-se, nunca antes se tratou tanto de cuidar do bem-estar de seus “moradores”, ainda mais com HIRONAKA sendo a “governanta”.




Guilherme de Sousa Cadorim[24]




[1] Texto que fez parte das aulas expositivas ministradas pelo autor nas monitorias de Direito Civil II da Faculdade de Direito de Franca nos anos de 2013-2015.
[2] Atualmente professora titular da cadeira de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP.
[3] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 05 e outubro de 1988. Artigo 3°, inciso I.
[4] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 05 e outubro de 1988. Artigo 1°, inciso III.
[5]HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 2.
[6] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade Civil Pressuposta: Evolução de Fundamentos e de Paradigmas da Responsabilidade Civil na Contemporaneidade. In: RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz; MAMEDE, Gladston; ROCHA, Maria Vital (coordenadores). Responsabilidade Civil Contemporânea: em homenagem a Sílvio de Salvo Venosa. São Paulo: Atlas, 2011, p. 40.
[7] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade Civil Pressuposta: Evolução de Fundamentos e de Paradigmas da Responsabilidade Civil na Contemporaneidade. In: RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz; MAMEDE, Gladston; ROCHA, Maria Vital (coordenadores). Responsabilidade Civil Contemporânea: em homenagem a Sílvio de Salvo Venosa. São Paulo: Atlas, 2011, p. 42.
[8] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 296.
[9] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 357.
[10] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Op. cit, p. 352.
[11] TARTUCE, Flávio. Direito Civil. vol. 2: Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil. 4. ed. São Paulo: Método, 2009, p. 469.
[12] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade Civil Pressuposta: Evolução de Fundamentos e de Paradigmas da Responsabilidade Civil na Contemporaneidade. In: RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz; MAMEDE, Gladston; ROCHA, Maria Vital (coordenadores). Responsabilidade Civil Contemporânea: em homenagem a Sílvio de Salvo Venosa. São Paulo: Atlas, 2011, p. 54.
[13] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 273.
[14] FACCHINI NETO, Eugênio. Da Responsabilidade Civil no Novo Código. In Sarlet, Ingo Wolfgang (organizador). O Novo Código Civil e a Constituição. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, Ed. 2006, p. 175 apud MARANHÃO, Ney Stany Morais. Responsabilidade Civil Objetiva pelo Risco da Atividade: uma perspectiva civil-constitucional. São Paulo: Método, 2010, p. 211.
[15] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. In: RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz; MAMEDE, Gladston; ROCHA, Maria Vital (coordenadores). Responsabilidade Civil Contemporânea: em homenagem a Sílvio de Salvo Venosa. São Paulo: Atlas, 2011, p. 42.
[16] Hipótese que guarda íntima relação com o pórtico desse trabalho, haja vista nela estar inserida a responsabilidade do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), que é órgão de vital importância para o direito previdenciário.
[17] TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Vol. 2: Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil. 4. ed. São Paulo: Método, 2009, p. 309 e 469.
[18] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade Civil Pressuposta: Evolução de Fundamentos e de Paradigmas da Responsabilidade Civil na Contemporaneidade. In: RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz; MAMEDE, Gladston; ROCHA, Maria Vital (coordenadores). Responsabilidade Civil Contemporânea: em homenagem a Sílvio de Salvo Venosa. São Paulo: Atlas, 2011, p. 55.
[19] Idem.
[20] SCHAMPS, Geneviève. La Mise em Danger: um concept fondateur d’um príncipe general de responsabilité (analyse de droit compare). Bruxelas: Bruylant e Paris: LGDJ, 1998 apud HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
[21] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade Civil Pressuposta: Evolução de Fundamentos e de Paradigmas da Responsabilidade Civil na Contemporaneidade. In: RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz; MAMEDE, Gladston; ROCHA, Maria Vital (coordenadores). Responsabilidade Civil Contemporânea: em homenagem a Sílvio de Salvo Venosa. São Paulo: Atlas, 2011, p. 56.
[22] Idem.
[23] HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade Civil Pressuposta: Evolução de Fundamentos e de Paradigmas da Responsabilidade Civil na Contemporaneidade. In: RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz; MAMEDE, Gladston; ROCHA, Maria Vital (coordenadores). Responsabilidade Civil Contemporânea: em homenagem a Sílvio de Salvo Venosa. São Paulo: Atlas, 2011, p. 59.
[24] É advogado, consultor jurídico, pós-graduando em Direito Processual Civil Empresarial, Diretor Executivo do Blog Cadorim e um dos idealizadores da Lex Populi.

You May Also Like

0 comentários