Um breve discurso sobre as linhas mestras da Responsabilidade Civil Pressuposta¹
Em
estudos que culminaram na sua tese de livre docência, GISELDA MARIA FERNANDES
NOVAES HIRONAKA[2] buscou guarida na Constituição Federal de 1988,
sobretudo, fundando-se no princípio da solidariedade social[3] e da dignidade da pessoa humana[4], para trazer a lume uma tese reformuladora do sistema de
responsabilidade civil.
Segundo ela, o sistema de responsabilidade
civil deve ter “por objetivo precípuo, fundamental e essencial a convicção de
que é urgente que deixemos hoje, mais do que ontem, um número cada vez mais reduzido de vítimas irressarcidas”[5]. A maneira de realizar esse objetivo
seria para ela a Responsabilidade Pressuposta.
Para HIRONAKA, todo o mundo
jurídico, mas mais especialmente os sistemas ocidentalizados, têm buscado
alcançar uma construção (ou talvez a consolidação) de um denominador comum,
isto é, um critério suficientemente capaz de assegurar, no modo de vida
contemporâneo, a reparação efetiva e adequada aos danos sofridos[6].
Apesar de parecer contundente, não
é fácil, em sociedades democráticas e pluralistas (que por sua vez constroem um
sistema jurídico com essa mesma identidade), encontrar um critério deste porte.
Tanto é assim, que acompanha essa noção de dificuldade a posição ciente da
autora, confira-se:
Não é simples
encontrar um critério dessa maneira, ou seja, portador de qualidades que o
permitam posicionar-se como um denominador comum de variadas hipóteses danosas,
já ocorridas ou não, bem como um critério que tenha qualidades e atributos tão
suficientes que possam arrebanhar as hipóteses todas, subsumindo-as à sua
determinação de responsabilização. Não é simples encontrar um critério assim
porque não se busca apenas um critério tão geral que possa, a partir de um
padrão de melhor segurança, constituir-se em fundamento essencial e intrínseco
de um sistema de responsabilização por vir. No entanto, pretende-se um critério
que pudesse, perfeitamente, determinar-se em prol dessas intenções e exigências
primordiais, quais sejam, em que o número de vítimas de danos que permanecem
irressarcidas fosse um número – a cada vez, e sempre – significativamente menor. [7]
Desde logo
cumpre esclarecer, no entanto, que a noção de responsabilidade civil que ela se
predispõe a tratar não implica em uma tentativa de evitar todo e qualquer tipo
de perigo, o que seria (segundo a própria HIRONAKA) “impraticável, inviável e
inimaginável” [8].
Pressupõe a
sua teoria a diminuição do dano.
Pois bem. Essa
diminuição do dano, ou pelo menos dos efeitos (irressarcidos) causados pelos
danos, seria conquistada a partir do momento em que fosse entendida a real
necessidade de se reformular o sistema de responsabilidade civil e “designar
novamente o responsável, em circunstâncias que superem ou ultrapassem os já
estreitos limites impostos pelos muros da culpa e da objetivação legal
casuisticamente descrita pela norma”.[9]
Tal seria
alcançado por meio de um critério geral de imputação que permitisse ao regime
objetivo de responsabilidade civil, situar-se além e a frente da casuística
legal já positivada (ou em vias de o ser), atendendo-se assim, efetivamente aos
ditames constitucionais da dignidade da pessoa humana e da solidariedade
social.
Significa
dizer, portanto, que a partir do instante que a inevitabilidade do dano é
aceita, “a disciplina jurídica da responsabilidade civil deveria visar à
redução do custo social que ele representa, seja por meio da adoção de medidas
de prevenção, ou porque alguém responderá por ele” [10].
Pode-se notar
assim que o dano mantém o seu papel de protagonista, mas agora o tratamento
dispensado a ele pelo sistema geral de responsabilidade civil deve ser outro,
tendo por base, por exemplo, os estigmas causados às vítimas, ao sistema e a
sua recente redimensionalização ontológica.
Exatamente
nesse desiderato é que se inspira o conceito de responsabilidade
pressuposta. Deve-se tentar buscar, prima facie, reparar o dano causado à
vítima, e só depois verificar de quem foi a culpa ou quem é que assumiu o risco
de causar aquele dano[11].
Assim porque,
tanto culpa quanto o risco mostraram-se como critérios insuficientes para serem
tidos como fundamentos do dever indenizatório; um pela dificuldade na sua
comprovação e o outro pela necessária espera por previsão legal que o abarcasse
[12].
Jamais seria
exigível, portanto, que a sociedade aguardasse, sentada e de braços cruzados,
sofrendo calada (ou gritando sem que ninguém a escutasse) até que um sistema
perfeito – ou melhor - fosse concebido (se é que isso seria possível).
Era preciso
uma resposta tão logo o problema fosse confrontado.
À culpa e ao
risco se deve impor, desta forma, o mero papel de fonte de responsabilidade
civil, não fundamento.
Parece algo inovador, mas pasme o leitor que já era
essa a concepção (ignorada) do eminente CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA antes mesmo
que as linhas de HIRONAKA fossem traçadas. Talvez agora ela mereça maior
atenção por ainda se mostrar retumbante e verdadeira, veja-se:
Culpa e Risco
devem deixar de ser considerados como fundamentos
da responsabilidade civil para ocuparem o lugar que efetivamente ocupam,
isto é, a posição de fontes da
responsabilidade civil, sem importar se uma delas tem primazia sobre a outra,
sem a preocupação de que uma aniquila a outra [...] [13]
Assim, em síntese, a teoria da
responsabilidade pressuposta traduz-se numa releitura que impele que sejam as
vítimas vistas antes que analisados as fontes da responsabilidade civil; é a
tradução de uma visão humanitária e solidária que o direito absorve e com quem
passa a ter uma saudável simbiose.
Arrisca-se o presente estudo a apontá-la como
saudável, pois ao direito civil é que – desde os seus primórdios – é dado
preocupar-se com a vítima e os danos sofridos por ela, tentando quanto possível
restabelecer a posição de uma igualdade destruída.
Por sua vez, a outros ramos do direito, como por
exemplo, o direito penal, incumbe a preocupação com o agente e a
reprovabilidade de sua conduta. Pauta-se esse raciocínio a partir das linhas de
FACCHINI NETO:
O foco atual
da responsabilidade civil, pelo que se percebe da sua evolução histórica e
tendências doutrinárias, tem sido no sentido de estar centrada cada vez mais no
imperativo de reparar um dano do que na censura do seu responsável. Cabe ao
direito penal preocupar-se com o agente, disciplinando os casos em que deva ser
criminalmente responsabilizado. Ao direito civil, contrariamente, compete
inquietar-se com a vítima[14]
Ainda para corroborar esse entendimento cumpre
trasladar os ensinamentos da “mãe” da
responsabilidade pressuposta, ela que pautada pela visão de necessidade de
efetivação da dignidade da pessoa humana, expõe a sua preocupação que o direito
deve ter com a vítima desde o momento de sua gestação:
O contorno
fundamental da principiologia de amparo e o matiz de sustentação do viés
axiológico de resguardo de tal reestruturação sistemática [da responsabilidade
civil] deverá estar, por isso mesmo, indelevelmente vinculado ao respeito à
dignidade da pessoa humana, esta que é, enfim, o sentido e a razão de toda e
qualquer construção jurídico-doutrinária ou jurídico-normativa. Tudo exatamente
para que o direito, pensado em sua gênese, cumpra seu papel mais
extraordinário, o papel de responsável pela viabilização da justiça e da paz
social.[15]
Por fim cumpre destacar que a posição de HIRONAKA e
de sua teoria não é tida como isolada na doutrina, seja nacional ou
estrangeira.
Nessa senda é, por exemplo, os apontamentos de
FLÁVIO TARTUCE que em sua obra indica algumas hipóteses em que a
responsabilidade pressuposta já é perfeitamente vislumbrada em nosso país.
Algumas das hipóteses trazidas por ele, em sua
obra, são a da responsabilidade civil do Estado[16], “uma vez que as vítimas
devem ser reparadas, para depois se investigar quem é o ‘culpado’, bem assim os
julgados que têm reconhecido a imprescritibilidade da pretensão atinente a
violações de direitos da personalidade” [17].
Já no que importa a doutrina internacional, como
mencionado, a própria HIRONAKA destaca os avanços das lições da ilustre
GENEVIÈVE SCHAMPS, jurista belga que chegou a um denominador comum capaz de ser
fonte e fundamento indiscutível de responsabilidade civil que resolveu por
chamar de “mise em danger”[18].
Conforme consta de nota explicativa da obra de
HIRONAKA[19],
o termo deriva da conjugação do particípio de verbo “pôr”, em francês, que
aliado de um complemento se transforma numa expressão idiomática que indica
ação; assim, “mise em danger” quer
denotar a ação de colocar em perigo ou em risco alguém.
De posse dessa noção é que SCHAMPS produziu um
estudo em que se buscava a verificação da (in) existência de padrão de
caracterização de determinadas situações que expõem as pessoas a determinado risco,
criticando as vertentes de exclusão da responsabilidade e mostrando quem eram
os responsáveis pela ocorrência de tais danos, ao seu entender, ressarcíveis[20].
Assim, com a definição de um limite pela fixação da “mise em danger” (o denominador comum) é que se podem alcançar
situações prejudiciais que legitimem a imputação de um dever de indenizar além
do sistema subjetivo e das prefixações específicas objetivas de
responsabilidade, considerando ainda as impossibilidades de se eliminar o
perigo por meio da ação de medidas de precaução[21].
Para os amantes mais apaixonados
da responsabilidade civil, chega ser emocionante conceber a construção de
justiça distributiva por meio da realização dessa técnica.
Não são em outros sentidos as conclusões de HIRONAKA:
A esse nível
de otimização talvez seja possível chegar a, em tempo não tão distante, de
sorte a se obter, enfim, um critério geral de fundamentação do regime objetivo
de responsabilidade civil, situado além da solução legal casuística, critério
este que visasse atender mais eficientemente os direitos das vítimas de danos,
considerando, sobretudo, os princípios constitucionais da solidariedade social e dignidade
da pessoa humana, e que se portasse, enfim, como um verdadeiro – e
suficientemente abrangente – autocritério
de justificação da responsabilização civil na contemporaneidade.[22]
A guisa de conclusão, cabe
elucidar os traços concretos daquilo que aqui se chamou de responsabilidade
pressuposta. O trecho, embora relativamente longo, é transcrição das relevantes
e valorosas linhas da própria matriarca da responsabilidade pressuposta:
Segundo a
nossa visão, e a partir da incansável reflexão acerca do assunto, até aqui, uma
mise en danger otimizada tenderia a corresponder ao que chamamos de
responsabilidade pressuposta e poderiam ser descritos assim os traços
principais que ela contém: 1) risco caracterizado (fator qualitativo): é a
potencialidade, contida na atividade, de se realizar um dano de grave
intensidade, potencialidade essa que não pode ser inteiramente eliminada, não
obstante toda a diligência que tenha sido razoavelmente levada a cabo, nesse
sentido; 2) atividade especificamente perigosa (fator quantitativo):
subdivide-se em: a) probabilidade elevada: corresponde ao caráter inevitável do
risco (não da ocorrência danosa em si, mas do risco da ocorrência). A
impossibilidade de evitar a ocorrência nefasta acentua a periculosidade,
fazendo-a superior a qualquer hipótese que pudesse ter sido evitada pela
diligência razoável; b) intensidade elevada: corresponde ao elevado índice de
ocorrências danosas advindas de uma certa atividade (as sub-espécies deste
segundo elemento podem, ou não, aparecerem juntas; não obrigatoriamente).[23]
A sensação que se tem, portanto,
depois de toda essa análise e mudanças, é de que passa um verdadeiro tornado
pela casa da responsabilidade civil: seus móveis estão fora dos lugares usuais,
suas paredes e alicerces estão trincados, uma série de doutrinas e
jurisprudência entra e saem de seu interior, o afluxo de idéias é um fervilhar
sem fim; mas, frise-se, nunca antes se tratou tanto de cuidar do bem-estar de
seus “moradores”, ainda mais com
HIRONAKA sendo a “governanta”.
Guilherme de Sousa Cadorim[24]
[1] Texto que fez parte das aulas
expositivas ministradas pelo autor nas monitorias de Direito Civil II da
Faculdade de Direito de Franca nos anos de 2013-2015.
[2]
Atualmente professora titular da cadeira de Direito
Civil da Faculdade de Direito da USP.
[3]
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 05
e outubro de 1988.
Artigo 3°, inciso I.
[4] BRASIL. Constituição
da República Federativa do Brasil: promulgada em 05 e outubro de 1988. Artigo 1°, inciso III.
[5]HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes
Novaes. Responsabilidade pressuposta. Belo
Horizonte: Del Rey, 2005, p. 2.
[6] HIRONAKA, Giselda Maria
Fernandes Novaes. Responsabilidade Civil
Pressuposta: Evolução de Fundamentos e de Paradigmas da Responsabilidade Civil
na Contemporaneidade. In: RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz; MAMEDE, Gladston;
ROCHA, Maria Vital (coordenadores). Responsabilidade Civil Contemporânea: em
homenagem a Sílvio de Salvo Venosa. São Paulo: Atlas, 2011, p. 40.
[7] HIRONAKA, Giselda Maria
Fernandes Novaes. Responsabilidade Civil
Pressuposta: Evolução de Fundamentos e de Paradigmas da Responsabilidade Civil
na Contemporaneidade. In: RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz; MAMEDE, Gladston;
ROCHA, Maria Vital (coordenadores). Responsabilidade Civil Contemporânea: em
homenagem a Sílvio de Salvo Venosa. São Paulo: Atlas, 2011, p. 42.
[8] HIRONAKA, Giselda Maria
Fernandes Novaes. Responsabilidade
pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 296.
[9] HIRONAKA, Giselda Maria
Fernandes Novaes. Responsabilidade
pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 357.
[11]
TARTUCE, Flávio. Direito Civil. vol. 2: Direito
das Obrigações e Responsabilidade Civil. 4. ed. São Paulo: Método, 2009, p. 469.
[12] HIRONAKA, Giselda Maria
Fernandes Novaes. Responsabilidade Civil
Pressuposta: Evolução de Fundamentos e de Paradigmas da Responsabilidade Civil
na Contemporaneidade. In: RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz; MAMEDE, Gladston;
ROCHA, Maria Vital (coordenadores). Responsabilidade Civil Contemporânea: em
homenagem a Sílvio de Salvo Venosa. São Paulo: Atlas, 2011, p. 54.
[13] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro:
Forense, 1996, p. 273.
[14] FACCHINI NETO, Eugênio. Da Responsabilidade Civil no Novo Código. In
Sarlet, Ingo Wolfgang (organizador). O
Novo Código Civil e a Constituição. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, Ed. 2006, p. 175 apud MARANHÃO,
Ney Stany Morais. Responsabilidade Civil Objetiva pelo Risco da Atividade:
uma perspectiva civil-constitucional. São Paulo: Método, 2010, p. 211.
[15] HIRONAKA, Giselda Maria
Fernandes Novaes. In: RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz; MAMEDE, Gladston; ROCHA,
Maria Vital (coordenadores). Responsabilidade Civil Contemporânea: em
homenagem a Sílvio de Salvo Venosa. São Paulo: Atlas, 2011, p. 42.
[16] Hipótese que guarda
íntima relação com o pórtico desse trabalho, haja vista nela estar inserida a
responsabilidade do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), que é órgão de
vital importância para o direito previdenciário.
[17] TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Vol. 2: Direito das
Obrigações e Responsabilidade Civil. 4. ed. São Paulo: Método, 2009, p. 309
e 469.
[18] HIRONAKA, Giselda Maria
Fernandes Novaes. Responsabilidade Civil
Pressuposta: Evolução de Fundamentos e de Paradigmas da Responsabilidade Civil
na Contemporaneidade. In: RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz; MAMEDE, Gladston;
ROCHA, Maria Vital (coordenadores). Responsabilidade Civil Contemporânea: em
homenagem a Sílvio de Salvo Venosa. São Paulo: Atlas, 2011, p. 55.
[19] Idem.
[20] SCHAMPS, Geneviève. La Mise em Danger: um concept fondateur
d’um príncipe general de responsabilité (analyse de droit compare). Bruxelas:
Bruylant e Paris: LGDJ, 1998 apud HIRONAKA,
Giselda Maria Fernandes Novaes. Responsabilidade
pressuposta. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.
[21] HIRONAKA, Giselda Maria
Fernandes Novaes. Responsabilidade Civil
Pressuposta: Evolução de Fundamentos e de Paradigmas da Responsabilidade Civil
na Contemporaneidade. In: RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz; MAMEDE, Gladston;
ROCHA, Maria Vital (coordenadores). Responsabilidade Civil Contemporânea: em
homenagem a Sílvio de Salvo Venosa. São Paulo: Atlas, 2011, p. 56.
[22] Idem.
[23] HIRONAKA, Giselda Maria
Fernandes Novaes. Responsabilidade Civil
Pressuposta: Evolução de Fundamentos e de Paradigmas da Responsabilidade Civil
na Contemporaneidade. In: RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz; MAMEDE, Gladston;
ROCHA, Maria Vital (coordenadores). Responsabilidade Civil Contemporânea: em
homenagem a Sílvio de Salvo Venosa. São Paulo: Atlas, 2011, p. 59.
[24] É advogado, consultor jurídico,
pós-graduando em Direito Processual Civil Empresarial, Diretor Executivo do Blog Cadorim e um dos idealizadores da
Lex Populi.
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